marau
ma.rau
nome e adjectivo masculinos
(do francês maraud, «maroto»)
Galicismo interessante por ter entrado no léxico português com uma grafia semelhante à do francês e não com uma grafia que reflectisse um critério fonético, isto é que terminasse com o som «ô». Ou então é uma palavra que nos diz alguma coisa sobre a articulação do ditongo «au» num certo momento da história da língua que poderia perfeitamente ser o período das invasões francesas. Seja como for, o «maroto» francês tem em português tons mais carregados. O marau é o mariola, coisa italiana que significa patife, querendo dizer o malandro, talvez mesmo o malandrão. Mais do que biltre ou tratante, o marau é o que hoje se chamaria um «hooligan» de salão. É o corrécio, palavra que parece ter desaparecido dos dicionários, mas que a célebre saga dos irmãos Cavaco popularizou, para quem se lembra, que indica aquele que não obedece a ditames. O marau é um vadio, mas é também um malicioso. No fundo, o marau é uma figura de todos os tempos, um tipo que prefere a boa-vai-ela, que vive de expedientes e aparentemente ninguém controla. Hoje há também os maraus da política, sempre na linha da frente do proselitismo partidário, cães-de-fila parlamentares ou governamentais. São dados à incontinência verbal e à veemência. Geralmente, aparecem muito na televisão.
In real time e sem anestesia
Às vezes parece estarmos a assistir assim ao fim do projecto europeu. Na sexta-feira passada, em lágrimas, a ministra do comércio externo canadiana, saindo de encontro com o presidente do governo valão (região do sul da Bélgica cujos habitantes falam francês), governo que à última hora decidiu bloquear acordo comercial de grande alcance, começado a negociar há 6 anos entre a União Europeia e o Canadá, fez a declaração seguinte (cito-a em francês como ela falou):
« Au cours des derniers mois nous avons travaillé très fort avec la Commission européenne et avec beaucoup des pays des membres-états de l’Union européenne, y compris l’Allemagne, la France, Autriche, la Bulgarie, la Roumanie. Le Canada a travaillé vraiment et moi personnellement j’ai travaillé très fort.
Mais il semble évident pour moi, pour le Canada, que l’Union européenne n’est pas capable maintenant d’avoir un accord international même avec un pays qui a des valeurs si européennes comme le Canada, et même avec un pays si gentil et avec beaucoup de patience comme le Canada.
Le Canada est déçu. Moi personnellement je suis très déçue. J’ai travaillé très fort. Mais je pense que c’est impossible. Nous avons décidé de retourner chez nous et je suis très, très triste et c’est une chose emotionelle pour moi. La seule bonne chose que je peux dire c’est que demain matin je serai chez moi avec mes trois enfants ».
É bonito - e triste - mas afinal, sábado de manhã (altura em que escrevo estas linhas: por razões longas de enumerar devo acabar hoje o texto que irá para o ar – ou o éter ou a web, não sei como dizer – na próxima quarta-feira) a senhora está ainda em Bruxelas a negociar com o presidente do Parlamento Europeu antes de voltar para casa ainda hoje e talvez, depois desta peripécia, tudo fique pronto a tempo do jovem Trudeau (filho do velho Trudeau que já morreu e também foi primeiro ministro do Canadá) assinar na quinta-feira em Bruxelas, como previsto, o novo acordo. Esperemos que sim – mas o episódio é característico da doença que mina a Europa desde que a URSS acabou. O medo dela dava pulsões centrípetas aos países das Comunidades Europeias que iam ajudando a União a fazer-se. Agora cada um trata de si e liga pouco aos outros, como era costume dantes. O poder comercial da Europa vem da Comissão negociar com terceiros em nome dos países membros. Este verão, sob enorme pressão da Alemanha e doutros, contra a opinião dos seus serviços jurídicos, a Comissão deixou que nações pudessem negociar também. Levou mais tempo e estava quase feito quando a estrutura constitucional belga permitiu que os valões se metessem a desmancha-prazeres. O precedente vai enfraquecer a Europa.
E dá mais uma história belga. Má. A maioria flamenga, de economia mais rica, está furiosa e eu lembrei-me do meu colega belga de Estrasburgo, em 1979. « Tu sais ce que c’est que la pollution ? Un wallon dans la Meuse. Et la solution ? Tous les wallons dans la Meuse! ».
Barrabás
Os povos portam-se mal, mesmo povos que toda a gente aprendeu na escola serem viveiros de democracia. (Embora haja progresso: se, em vez de passar os dedos pelo teclado do computador para compor estas linhas no ano da Graça de 2016 eu estivesse a passar aparo de caneta de tinta permanente sobre papel almaço no ano em que nasci, quisesse ser rigoroso e ficar bem com a minha consciência, teria tido de escrever “que toda a gente que foi à escola aprendeu” porque à escola no Portugal dessa altura pouquíssima gente ia, sendo o remanescente maioritário das crianças portuguesas grupo a que o aparachique e ficcionista Soeiro Pereira Gomes chamou “os filhos dos homens que nunca foram meninos”, dedicando-lhes o romance Esteiros de que gostei, sendo o único romance neorrealista que me agradou porque os outros sofriam todos de pecha, comum também às pinturas dessa escola, que professor numa universidade de Londres explicava bem: “No impressionismo pinta-se o que se vê; no expressionismo pinta-se o que sente; no realismo social pinta-se o que se ouve”. Pinta-se e escreve-se).
Os ingleses, herdeiros da Magna Carta com que gostavam de vez em quando de apoucar os outros, graças a Primeiro Ministro conservador cuja paciência para os eurocépticos do seu partido se esgotara e resolvera pôr a questão da Europa a referendo e cuja inépcia o fizera depois perdê-lo (expediente político favorito dos populistas, o referendo foi ganho por demagogos desonestos e irresponsáveis) votaram por sair da Europa sem entenderem bem do se tratava, sobretudo por estarem fartos dos “políticos de Londres” e de um sistema que cria 1% de ricos cada vez mais ricos e 99% de uma mistura de pobres cada vez mais pobres e de classe média a resvalar para a pobreza. Com a poeira a assentar está a descobrir-se que o país vai ficar mais fraco do que era e que a mudança lhes vai custar os olhos da cara.
Os norte-americanos que gostam tanto ou mais do que os ingleses de se pavonearem com evocações da Magna Carta (mais as sua próprias Declaração de Independência, Constituição e Alocução de Gettysburg), a seguir a mais de um ano de berrarias e impropérios que se chamaram eleições primárias em cada um dos dois grandes partidos e agora campanhas mesmo para a presidência do país, entre uma senhora competente (sem jeito para a política mas competente) e, pelos padrões da sua terra, do seu tempo e da sua profissão, decente, e um mitómano sociopata, desonesto e ordinário, indecente por quaisquer padrões. Milhões de americanos parecem achar que deveria ser ele o novo inquilino da Casa Branca. Dia 8 de Novembro se saberá mas muito mal já foi feito - para ficar.
Toda a gente gosta de lembrar Churchill: a democracia é o pior sistema de governo tirando todos os outros. É verdade mas é verdade também que o povo tem dias: a história moderna está cheia de maus exemplos – e não só ela. Convém nunca esquecer que o povo escolheu Barrabás (e terem sido os judeus já não serve de desculpa).
Deutschland über alles?
Ou não? Na eleição de António Guterres para Secretário-Geral das Nações Unidas houve episódio esquisito. Depois de 5 votos a feijões todos ganhos por Guterres e antes do sexto, o governo da Bulgária retirou a sua candidata, Directora Geral da UNESCO, senhora socialista que tinha o apoio da Rússia e, por instigação de Angela Merkel, nomeou outra, Comissária Europeia, de direita. Guterres ganhou também a sexta votação e veio a ser escolhido por aclamação pelo Conselho de Segurança; a recém-vinda búlgara de direita teve ainda menos votos do que a búlgara de esquerda (que se mantivera em liça, indigitada por outro país). O curioso da história é Merkel ter decidido meter-se ao barulho quando a vitória de Guterres estava assegurada. Houve escolhas para Secretário-Geral da ONU renhidas, num caso pelo menos exigindo coelho tirado à última hora da cartola para fugir a impasse de vetos cruzados. Mas este ano não. Ou Merkel foi mal informada pelos seus de como as coisas se estavam a passar ou julgou que apesar de tudo a sua vontade prevaleceria (mais provavelmente, mistura de ambas as coisas). Não prevaleceu. Será o proverbial canário da mina?
Oxalá. Quem trate há muito tempo de coisas europeias - nos milhares de reuniões, entra o ano sai o ano, em que diplomatas, burocratas, políticos e técnicos de (hoje) 28 países concertam posições sobre toda a espécie de assuntos – conheceu três fases distintas quanto à participação da Alemanha. Na primeira, durante aí um quarto de século a seguir ao Tratado de Roma de 1957 - criador do processo formal que levaria à União Europeia - a Alemanha derrotada, saindo aos poucos da ruína, envergonhada, não mostrava preferências próprias nem levantava a voz, cultivava europeísmo em vez de patriotismo, e era seguidora disciplinada de quaisquer consensos. Na segunda, começada no fim dos anos 80, a Alemanha, primeiro com a capital ainda em Bona e depois, de novo inteira, em Berlim, começou a dar sinais cada vez mais fortes e frequentes de hegemonia e de gosto por a exercer. (O anúncio, em Dezembro de 1991,de que ia reconhecer a independência da Croácia sem esperar por acordo a Doze foi marco importante de autonomia política reconquistada). A terceira começou em 2010 com a crise financeira e a austeridade, declarada política obrigatória no Sul da Europa para quem quisesse receber ajuda de “Bruxelas” (que compensou primeiro perdas de bancos alemães e franceses), e foi anunciada em termos moralistas ofensivos pela formiga germânica às cigarras meridionais. Grande responsável pelo marasmo económico europeu tem sido acompanhada, também noutros campos, por arrogância crescente de quase todo o pessoal alemão que participa nos milhares de reuniões europeias.
O descontentamento de outros europeus perante esta situação absurda cresce; talvez leve Berlim a mudar de rumo. É urgente que o faça antes de tanta cegueira acabar de vez com reabilitação alemã que parecia há 10 anos ter vindo para ficar.
NB Há gente a mais agora a dar palpites sobre política internacional. E aconselhar a Alemanha, de dedo em riste, a partir de um pequeno blog lisboeta parece néscio. Mas será? Em 1914 quando se soube no Cartaxo que a Alemanha invadira a Bélgica, o director do jornal da vila saltou de cadeira de barbeiro meio escanhoado e saiu a correr, anunciando que ia escrever artigo a escavacar o Kaiser. E o facto, como lembrou o advogado e dramaturgo Amilcar Ramada Curto que contou depois a história, é que o Kaiser perdeu a guerra.
Família
A família faz-nos amar pessoas de quem nunca gostaríamos se as tivéssemos conhecido de outra maneira. Assim, não gostamos delas mas amamo-las. Treino inestimável para a vida, de que nem nos damos conta: aprende-se sem ter de ser ensinado.
Família como é em Portugal. No centro está o próprio, com pai e mãe, irmãos, irmãs, avós paternos e maternos, tios, tias, primos, primas, a certa altura quase sempre também mulher ou marido, filhos, filhas, netos, netas, sobrinhos, sobrinhas (e sogros, sogras, genros, noras). O parentesco traça-se igualmente pelo lado do pai e pelo lado da mãe; este sistema de parentesco, existente na Europa toda e, hoje em dia, em muitas outras partes do mundo, chama-se cognático. Há outras variedades. Se o parentesco se traça só pelo lado do pai o sistema chama-se patrilinear. Se se traça só pelo lado da mãe chama-se matrilinear - o que não quer dizer mulheres a mandar; quem manda são sempre os homens (‘matriarcados’ são ficções mitológicas). O que varia é a transmissão de bens, obrigações, honras de uma geração para outra. No sistema cognático estes são transmitidos pelos dois lados, no patrilinear eu herdo através do meu pai e o meu filho herda através de mim. No matrilinear eu herdo através do irmão da minha mãe e o filho da minha irmã herda através de mim. No primeiro caso não tenho parentes do lado da mãe; no segundo, é do lado do pai que não os tenho. Nalgumas sociedades tradicionais, como as dos aborígenes australianos, há regras de casamento complicadíssimas. Os europeus que as descobriram em finais do século XIX só vieram a entendê-las devidamente com ajuda de modelos matemáticos, enquanto os aborígenes, analfabetos e ignorantes de álgebra, as dominavam tão completamente que sabiam sempre com quem poderiam casar ou não (antes de instrução e envangelização obrigatórias lhes terem começado a embotar a broca do entendimento).
Seja como for, a família –no começo disto tudo, à bulha com outras famílias - é o primeiro grupo a que se pertence. Quer para quem acredite, com Jean-Jacques Rousseau, que o homem é naturalmente bom e é a sociedade que depois o estraga, quer para quem acredite, com Thomas Hobbes, que a maldade nos vem da matriz e só a sociedade poderá minorá-la. Desde que há homo sapiens até hoje – um ápice na história do universo – outros grupos foram tirando comando e controle à família até se chegar à visão de superestado que a União Europeia ambiciona ser. Mas quando as coisas dão para o torto como, de há 8 anos para cá, estão a dar na Europa e nos Estados Unidos – “A malta agora é mais pobre do que eram os pais da malta” - a família sai do pano de fundo e volta à boca de cena, nem sempre para maior bem-estar de todos nós. Com ela reforçam-se, em ordem descendente de mal fazer, máfias, nepotismo, corrupção, compadrios. Perde-se respeito pela coisa pública - a res publica, a República – e pelos que enriquecem à custa dela e nossa. A hora é dos gladiadores. Não se irá ao sítio a bem.
insónia
in.só.ni.a
nome feminino
(do latim insomnia)
Estado de privação do sono, também designado por espertina, pleno de inquietações fantasiosas (ou de fantasias inquietantes), acalentadas por lúcidos, embora lúgubres, fantasmas nocturnos, que o dia expulsou e se refugiaram na penumbra. Recanto da memória onde se guarda a banheira de Arquimedes. Para o insone, a noite torna-se crua, redonda, não literária, sem princípio nem fim, só noite.