Atenas, 2015
Depois da vitória do Syriza
Das flores postas por Alexis Tsipras diante do muro em Atenas que recorda e condena o fuzilamento de 200 resistentes gregos por soldados alemães do III Reich em 1944, do seu anúncio da intenção de ficar na Europa e no euro, fazendo entretanto coligação de governo com partido de extrema direita, hostil à Europa, depois do anúncio de posições de partida, grega e europeia+FMI, aparentemente irreconciliáveis, seguir-se-ão semanas de regateio digno de bazar turco ou da antiga Praça da Figueira ao fim das quais a Grécia irá ficar no euro (onde nunca deveria ter entrado, mas é assim).
Saída seria golpe mortal no projecto europeu. Hoje a alternativa europeia é: ou prosperarmos juntos ou arruinarmo-nos separados. Apesar de haver partidos estridentes contra a União nos quatro grandes países membros (e também nalguns pequenos) o bom senso tem levado a melhor de indignações causadas pela falta de cabeça e de coração dos nossos chefes políticos. Há quem pense que a mediocridade é inevitável depois de tantas décadas sem guerra; eu julgo que ela venha de um encurtar de vistas deliberado para agradar aos eleitores, garantindo paz sem ter de gastar em defesa. Com o fim da Guerra Fria, deixara de haver rapazes maus. Entretanto, essa aldrabice levou um rombo: a Rússia de Putin, na Ucrânia; muçulmanos sunitas salafistas no Estado Islâmico destaparam-na.
O projecto europeu fora lançado a seguir a 1945 para acabar com guerras entre a França e a Alemanha e para resistir ao expansionismo da União Soviética. Deu boa conta do recado – tal como a OTAN, a qual se houve tão bem que no conceito estratégico russo congeminado no Kremlin de Vladimir Vladimirovich (“A maior tragédia geopolítica do século XX foi o fim da União Soviética”) ocupa, juntamente com os Estados Unidos, lugar de papão-mor.
Tsipras manobra trunfo táctico que o alinha com os bons sonhos inocentes da troika: combater antes de tudo a corrupção - que Pasok e Nova Democracia sempre cultivaram - fazendo cumprir leis, pagar impostos, escolher funcionários por mérito e não por parentesco e compadrio. Em suma: inventando um estado novo. Tentar substituir a Grécia que há, com ascendência fantasiada de zénite intelectual e artístico e misérias e manhas de província otomana, por uma espécie de Holanda de 5ª Divisão.
Talvez os europeus, cercados de perigos, decidam que têm de se entender. Fala-se de perdões de dívida: são muitos na história do capitalismo, sobretudo à Alemanha em 1953. Há quem esqueça que então a URSS existia e era vital prevenir tentações neutralistas de Bona. Hoje o quadro é outro mas encontrar-se-á maneira de aliviar o erro da austeridade aplicada como remédio à doença grega (falsa teoria e prática nefasta) sem lesar outros contribuintes europeus.
O direito internacional é flexível. Quando, em 1998, Robin Cook disse a Madeleine Albright que, segundo os seus advogados, bombardear a Sérvia seria ilegal, ela respondeu: “Arranje outros advogados”.
Paris, Place de la République, 11 de Janeiro de 2015 *
Vidas decentes
“Il faut de tout pour faire un monde” disse eu, resignado a já não sei que iniquidade. “É por isso que o mundo é tão mal feito”, respondeu o António Alçada.
Ocorreu-me essa resposta lapidar do autor de Peregrinação Interior depois de ver, ouvir e ler em resultados de inquéritos que, desde o Papa Francisco até ao Rei da Jordânia, passando por 42% dos cidadãos da República Francesa, muito boa gente acha que os humoristas do Charlie Hebdo assassinados no dia 7 tinham ido longe demais e que os sobreviventes haviam reincidido no número da semana passada, vendido aos milhões. Daí a achar-se que as razões do morticínio inadmissível possam ser entendidas – se um homem insultasse a minha mãe eu dava-lhe um murro, teria dito o Papa a jornalistas – vai caminho curto demais para salvaguarda da decência do nosso viver.
Quem sacrifique liberdade a segurança não merece nem uma nem outra, explicou Benjamim Franklin, revolucionário de 1776, um dos” Pais Fundadores” dos Estados Unidos da América, e evoco-o porque quando, a seguir ao massacre, milhões de pessoas ostentando “Je suis Charlie” encheram ruas e praças de Paris e outras cidades francesas, não estavam a subscrever o que os cronistas e caricaturistas do semanário houvessem escrito ou desenhado, estavam a afirmar e a defender o direito que estes tinham de o fazer.
Esse espírito, espinha dorsal da França desde a Revolução de 1789, que resistiu à restauração do Império, à Comuna de Paris e à sua punição brutal, ao regime de Vichy durante a Segunda Grande Guerra, mas que nas décadas de prosperidade e paz que vieram a seguir e no marasmo quezilento dos últimos anos parecia ter adormecido, endireitou-se agora quando o estandarte sangrento da tirania se levantou outra vez. Espírito capaz de mover montanhas, muitos conspiram para o abater mas nele reside a esperança da França e da Europa. E toda a conversa de “Je ne suis pas Charlie” , de Charlie ter ido longe demais no insulto a crenças e ideias de outros – neste caso muçulmanos; em casos anteriores cristãos e judeus – é falso remédio que aumenta o mal em vez de o curar.
Mesmo que não nos debrucemos sobre lugares onde houve queima da bandeira tricolor (embora se lembre, para exemplo, que no Paquistão as últimas manifestações anti-ocidentais antes destas haviam sido contra a atribuição do prémio Nobel da Paz à pequena que os Talibãs tinham tentado assassinar por advogar educação feminina e que na Chechénia o cacique sanguinolento que lá reina mandou manifestar também) essa conversa ataca a base de sociedades como a nossa: a liberdade de pensar e dizer o que se pensa; o direito à vida quer se creia quer não se creia em Deus. Os dois estão ligados como irmãos siameses: se se restringir a liberdade de expressão para não ofender almas sensíveis que possam ser levadas a assassinar quem faça troça do seu Deus (ou impedir que mulheres saibam ler e escrever), começa a destecer-se o pano em que é talhada a decência do nosso viver.
Foto: David Futscher Pereira
© Philippe Geluck
Allons enfants de la Patrie
Qual foi a consequência principal da Revolução Francesa? Há meio século, Chu En Lai respondeu que era cedo demais para se saber. Talvez na semana passada a resposta tenha vindo, mesmo que outros sábios chineses objectem (Voltaire nunca teve fãs para as bandas de Pequim).
Começando no massacre de quarta-feira de manhã na redacção de Charlie Hebdo por dois jiadistas franceses e acabando na multidão afirmativa – eu sou Charlie, eu sou chui, eu sou judeu – marchando pelas ruas de Paris e de muitas outras cidades francesas no domingo à tarde, passando pelo assassinato de polícias e de quatro judeus, reféns numa loja de comida judia de terceiro jiadista francês, um enorme sobressalto sacudiu a França.
Tirou-a do torpor triste, desencantado e quezilento em que há anos a pouco e pouco se afundava (embora os franceses continuassem a fazer mais filhos por casal do que quaisquer outros europeus) recusando adaptar-se às exigências do mundo globalizado e digital. Desde 1995 fora assim: governo anunciava reformas, sindicatos opunham-se; Assembleia Nacional passava leis, povo saía à rua; após curto braço de ferro, o governo desistia. E em pano de fundo, apesar das iniquidades de Vichy, há em França mais judeus e, apesar de descolonização argelina calamitosa, mais árabes, do que em qualquer outro país da Europa – embora com milhares de uns a emigrarem para Israel e milhares dos outros a rumarem à jiad. No domingo à tarde era como se um sopro de liberdade tivesse levantado toda a gente do chão e a houvesse feito levitar.
Charlie Hebdo, que imprimira as caricaturas dinamarquesas de Maomé e publicara número “editado pelo Profeta”, vira a redacção incendiada e recebera ameaças (a protecção policial do director morreria com ele). As suas sátiras da extrema direita e dos monoteísmos eram, para muitos, de ferocidade ofensiva e de mau gosto. As vendas vinham a baixar. Mas a brutalidade dirigida da destruição – “Matámos Charlie Hebdo”; “Vingámos o Profeta” gritaram os assassinos – acordou os valores adormecidos da República. No peito de cada francês bateu de novo a liberdade contra os inimigos da revolução de 1789; a liberdade escrita por Éluard em toda a parte – Sur mes cahiers d’écolier Sur mon pupitre et les arbres Sur le sable sur la neige – contra a ocupação nazi de 1940-44.
A procissão só vai no adro (Charlie Hebdo troçaria da imagem): mais de 50 pequenos atentados de vizinhança antimuçulmanos foram praticados desde o dia 7 em França; em Dresden a manifestação semanal contra “a islamização da Europa” foi segunda-feira a mais concorrida de todas. Para profilaxia e tratamento da barbárie que tenta instalar-se é preciso mexer em muitas coisas, dos liceus às casernas. Mandar com cabeça fria, coração quente e pulso firme. Por muito tempo.
Entretanto, eu sou Charlie. Prefiro ser de um lugar onde cada um possa pensar o que queira e o possa dizer – a ser de um lugar onde seja obrigatório acreditar num Deus. É essa a escolha.
Expulsion from number 8 Eden Close
Grayson Perry, 2012
A vida do porco
A vida do porco não é tão má como se julga nem enquanto o animal, ainda vivo, pasta bolota no montado nem, depois de morto, na fase de enchido: o que rala é a transição.
Sentença de Cirilo Volkmar Machado, autor de dicionário de pintores e escultores portugueses e 1º Visconde de Santo Tirso, citada em conversa pelo Professor Francisco Vieira de Almeida, filósofo, monárquico oposicionista a Salazar, espírito luminoso que tive a sorte de conhecer.
A Europa está em transição e tal como os suínos os europeus não percebem bem o que lhes está a acontecer nem onde irão parar – mas ao contrário dos suínos andam raladíssimos com isso. Não sirvas a quem serviu, não peças a quem pediu, recomendava-se em tempos de capilaridade social tão escassa que permitia tais preferências. A caldeirada de classes e nações em que nos fomos metendo não dá para ser niquento: mendigos não escolhem, diz-se em inglês. Claro que mendigos não somos mas deixámos de ser donos do mundo – já não o éramos há quase 100 anos embora sábios nossos gostassem de julgar que havíamos passado a ser os gregos dos novos romanos mas mesmo essa ilusão se perdeu desde que a União Soviética se desfez e os Estados Unidos precisam menos da Europa.
Tudo está a mudar, com pressa inédita. A globalização tem efeitos ruinosos em partes das economias europeias; ao mesmo tempo que levanta milhões do chão da pobreza noutros continentes. Segundo medições que se fazem agora – toscas, mas é o que há – encontra-se muito mais gente no mundo convencida de ser mais feliz hoje do que era há cinco anos do que do contrário (esta última, sobretudo na Europa). A automatização – incluindo robots cada vez mais parecidos connosco e progresso em inteligência artificial – abre outras brechas nas maneiras de investir e trabalhar de há um século para cá. Nova divisão de tarefas entre sexos e idades afecta toda a gente, em diferentes graus mas no mesmo sentido. A digitalização está a virar de pernas para o ar produção e comércio. O conselheiro principal de tecnologia da Casa Branca, mulher vinda do MIT e de Google, indigna-se quando ouve adultos altamente instruídos dizerem diante de crianças que são nulos em ciência e em matemática: “Isso tem de mudar. Nunca tal diríamos sobre ler e escrever”. Que as ciências estavam a ganhar terreno às humanidades no olear das máquinas de poder do mundo já se sabia antes de Silicone Valley. “Ó tia, o que são engenheiros?” perguntou a miúda. “São doutores, filha”, respondeu a varina. Ouvidas na Madragoa, há 50 anos.
Meio milénio a mandar no mundo, com Vasco da Gama e Gutenberg entre as figuras de proa, criaram hábitos de mó de cima custosos de perder mas sofrer faz parte da vida – e há muito pior.
Acabo onde comecei, lembrando Vieira de Almeida. Numa visita ao santuário de Lourdes, diante de multidão de inválidos e milhares de ex-votos deixados por peregrinos, ocorrera-lhe de repente que tudo aquilo era apenas uma pequena gota no mar imenso da dor humana.
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