Quarta-feira, 30 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais uma Guerra Mundial?

 

 

As comemorações de 1914 (ano do começo da Guerra que pôs Fim à Paz, como lhe chama Margaret MacMillan num livro magistral sobre as suas causas) em televisões, telefonias, editoras, revistas, e o à vontade pré-modernista de Vladimir Putin, cujo apetite russo de território evoca o Lebensraum nazi, levam-me a sentir que a nossa paz, o caldo de cultura da construção europeia, ficou de repente muito menos garantida.

 

Até ao fim da Guerra Fria, medo salutar da União Soviética fizera os europeus gastarem dinheiro em defesa (sempre menos do que deviam mas os Estados Unidos, embora queixosos, cobriam a diferença). Quando a União Soviética colapsou inventou-se o “dividendo da paz”. Governantes de quase todos os países europeus — menos Reino Unido e França — ignorantes ou esquecidos da história reduziram orçamentos de defesa a proporções ridículas com a justificação de que o colapso soviético eliminara o inimigo e não havia outro à vista. Agora há — mas há também quem não o queira ver.

 

A questão não é de meios — é de falta de vontade. 1945 foi há 69 anos, 1991 há 23 e, a quem não faça regime, a paz engorda. A Guerra Fria acabou sem tratado que ajustasse regras: essa ambiguidade ajuda Putin a pintar a manta, jogando na curteza de vistas cobarde dos europeus. Grandes patrões têm ido a Moscovo garantir-lhe pessoalmente ‘business as usual’. Apesar disso, os governantes da União Europeia (e todos os do G7), perante o desplante reafirmado do patrão do Kremlin e exortados por Washington têm alinhavado sanções contra a Rússia — começando pelos cortesãos do Czar — a pouco e pouco mais consequentes mas muito longe de causarem a dor precisa para parar provocações com que Putin nos põe à prova.

 

Se impusermos mais sanções económicas e se, simultaneamente, tornarmos bem visível por exercícios militares, patrulhas aéreas, etc., conduzidos na Polónia e nos países bálticos, a capacidade bélica da OTAN e a nossa disposição de recorrermos a ela se um dos Aliados for atacado, ganharemos. Sanções económicas trar-nos-iam prejuízos de curto prazo, exigindo explicação a eleitores mas seriam tão gravosas para a Rússia que Putin teria de encolher as garras. A capacidade de sofrimento do povo russo é grande (nenhum outro teve tantos mortos nas duas guerras mundiais) e a propaganda do Kremlin dissemina catadupas de aldrabices mas no nosso tempo tudo se conhece, se compara e o regime iria mudando. Depois, à Ucrânia e seus demónios daríamos o jeito possível, até com ajuda da Rússia.

 

Se não dermos um murro na mesa já, será depois difícil parar Putin sem guerra. E entretanto o nosso poder no mundo vai levando rombos. Quando votámos agora contra a Rússia na ONU, Brasil, India, África do Sul abstiveram-se. Os nossos valores em direito internacional e direitos do homem não serão universais mas que ao menos sejamos capazes de lutar por eles, com menos retórica e mais acção. Como disse um presidente americano: falar baixinho e trazer um grande cacete.

 

 

 

 

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Domingo, 27 de Abril de 2014

Vasco Graça Moura (1942-2014)

 

 

variação

 

                                                                            obscurent eum tenebrae et umbra mortis;

                                                                            occupet eum caligo,

                                                                            et involvatur amaritudine.

 

                                                                                                                       Job, I, 5

 

 

um verso envolto de amargura, "eclipse

nesse passo o sol padeça".

nas suas aliterações surdamente torturadas,

na sua imprecação contra o destino: à voz

 

 

das desventuras já pouco tempo resta no

ofício das trevas ciciado.

obscuramente a morte está na alma

do mundo. cinzas, cinzas

 

 

para a inquietação da vida, para o pardo avesso do tempo

medido a velas de cera, cinzas para a desolação,

silêncio para os silêncios. a terra erma

 

 

e dissonante, lá, onde a luz cala e a memória

se apaga, fulgor negro, adversidade, eclipse

nesse passo o sol padeça.

 

 

 

Vasco Graça Moura

in laocoonte

Poesia 2001-2005

Quetzal Editores/Bertrand Editora Lda, 2006

 

 

 

 

 

 

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Sexta-feira, 25 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

Foto: Eduardo Gageiro

 

 

 

 

 

 

Aurora Clara de Abril

 

 

Assim chamaram à menina recém-nascida encontrada na roda dos expostos da Vila de Monsaraz por homens saídos para o trabalho em madrugada luminosa desse mês, em ano do terceiro quartel do século XIX — não me lembro qual. Nem o ano nem o dia, mencionado na acta duma sessão da Câmara. Há uma probabilidade em trinta de ser 25 e como quando li a acta não reparei (faltava ainda essa achega à nossa leitura do passado), pode ser que tenha sido mesmo.

 

Tal coincidência daria alegria à elevada percentagem de portugueses que acha o 25 de Abril a data mais importante da nossa história e que, como quase toda a gente, é supersticiosa. Eu não sei remontar tanto e na celebração do dia fico-me por três vinhetas, com as suas luzes próprias. Cada uma vale o que vale.

 

Por ordem cronológica.

 

Em 1975, poucos dias antes das eleições para a Assembleia Constituinte, amigo meu, minhoto, estava de passagem na casa de Ponte da Barca quando três criadas velhas da mãe — tão velhas que ainda eram naturalmente analfabetas e, por isso, mais sagazes e reflectidas do que muito doutor moderno — lhe vieram falar. Queriam perguntar ao Menino: “Como é que se vota na lei antiga?”.

 

Na Primavera de 1978, eu era primeiro representante permanente português no Conselho da Europa em Estrasburgo – lá chegado no ano anterior porque antes de viver em democracia Portugal não podia ser admitido (durante o regime dos Coronéis, a Grécia tivera de sair) — Victor Cunha Rego era nosso embaixador em Madrid, falávamos ao telefone e eu disse-lhe que tinha aprendido do pai que Portugal era um país maravilhoso, habitado por uma maioria de gente boa e generosa, do qual uma minoria de gente má e mal formada tomara conta, chefiada pelo pior deles todos, o ditador Salazar. “Pois é” respondeu o Victor. “Eu também fui educado por um pai assim. E é grave, aos 50 anos, um homem descobrir que o pai era parvo”. Com o 25 de Abril, Victor e eu tínhamos passado de vítimas a cúmplices; da oposição ilegal à máquina do novo poder. E quem tivesse a mão na massa começava a descobrir que Salazar não era só causa dos nossos males; era também, e sobretudo, sua consequência.

 

Em 2008, Sofia Pinto Coelho convidou-me para programa de televisão dela que, de cada vez, tinha o mesmo fio condutor. A Sofia pegava numa pessoa e confrontava-a com passagem do seu passado. A mim coube-me ser levado a vila alentejana onde há quase 40 anos trabalhara como antropólogo e a que chamara Vila Velha em livro que publiquei. Fui filmado a falar com pessoas amigas que não via há muito tempo, entre elas a Ema, analfabeta e ainda muito bonita. A Sofia pediu-me para eu lhe perguntar se a vida agora era melhor ou pior do que quando eu lá estivera. A Ema olhou-me espantada e respondeu: “Não passamos fome!”

 

As velhas de Ponte da Barca, o Victor e a Ema já morreram. Não me cabe adjudicar mas, quando começa a haver outra vez gente com fome em Portugal, talvez a resposta da Ema capture o mais importante do 25 de Abril.

 

 

 

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Há 40 anos

 

 

Foto: Alfredo Cunha
mais aqui

 

 

No largo do Carmo, estava a força de Santarém e estava sobretudo Salgueiro Maia. Nas longas horas que com ele ali vivi e confraternizei, pude apreciar a tranquila audácia dum homem que, com duas autometralhadoras e centena e meia de recrutas, estava a destruir cinquenta anos de história, de farroncas de força e de poder, mantendo em respeito uma força profissional e adestrada como era a Guarda Nacional Republicana. Salgueiro Maia estava cercado; pelo Rossio quase até ao alto da Calçada do Carmo, pela Rua da Trindade e Largo da Misericórdia, onde se encontravam entrincheiradas as forças da GNR. No Chiado, até aos largos, os blindados hostis da Cavalaria 7, e julgo recordar que também da Cavalaria 2 e Metralhadoras 1. Mas nem sequer um sentimento de dúvida ou de incerteza pairou na praça. Levada pelo sopro da liberdade, a multidão acorria e o quadro do povo expressava ali a vontade da nação contra qualquer veleidade de repressão sangrenta.

 

 

Francisco de Sousa Tavares in "O Meu 25 de Abril"

artigo do jornal “Público”  27/04/91 aqui

 

 

 

 

 

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Quarta-feira, 23 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

Proles Wall, 1984 (detalhe)

Paula Rego 

 

 

 

 

 

Abriu a caça ao Barroso

 

 

O falecido A.B. Kotter — dos Bilhetes de Colares — distinguia-se dos colunistas portugueses porque se sentia bem em Portugal e eles não. Tal desgosto da Pátria há de ser o pano de fundo das maledicências com que, entra o ano, sai o ano, os “fazedores de opinião” da imprensa lisboeta — e notáveis em geral — se mimoseiam uns aos outros dentro e fora de portas. A 25 de Abril de 1974 o português fora destapado: o fim da Censura Prévia trouxera animação inédita; ultimamente redes sociais, blogosfera e outras invenções oferecem-lhe virtualidades novas. Egos e ids zumbem à solta, tal pragas de gafanhotos. Como se tudo isto não chegasse, hipocrisias calvinista e luterana do Norte da Europa descarregaram-nos em cima a mania da ‘transparência’ e o lado mais escuteiro dos Estados Unidos exportou a correcção política.

 

Há 25 anos, em Estrasburgo, na véspera de uma sessão da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, António Vaz Pereira e eu lembrámos a Diogo Freitas do Amaral que não podia no discurso do dia seguinte dizer mal do Presidente do país de que era ministro dos estrangeiros (como vinha no texto que mandara de Lisboa para traduzir). Eanes e Aliança Democrática não se davam bem mas seria infeliz badalar a desavença no estrangeiro.  Diogo, homem inteligente e bem formado, mudou o discurso.

 

Num quarto de século o ambiente geral deteriorou-se muito o que me leva à abertura da caça ao meu amigo Zé Manel. Tem feito correr rios de tinta mas serei curto e simples. Há duas razões principais que enraivam os portugueses contra ele. Ter trocado o seu lugar de primeiro ministro de Portugal pelo lugar de presidente da Comissão Europeia. Ter aplicado a Portugal programas de austeridade que, segundo muita gente, prejudicarão o país durante gerações. Quanto à primeira: presidentes anteriores da Comissão Europeia honraram os seus países (até Roy Jenkins na eurocéptica Inglaterra) e o ex-primeiro ministro belga, escolhido para primeiro presidente permanente do Conselho Europeu, diz que, entre os seus, é como se tivesse sido beatificado. Em Portugal, inveja e o sentimento de que qualquer bem alheio me faz mal a mim toldam o entendimento. É como se ter um português presidente da Comissão Europeia fosse uma vergonha para Portugal.

 

Quanto à austeridade (a meu ver, haveria melhores remédios) foi primeiro alvitrada no G20 e depois aprovada sem uma voz contra no Conselho Europeu. A Comissão contribuiu a pô-la em prática no que lhe competia, juntamente com o Banco Central Europeu e o FMI. Durante estes anos difíceis, a Comissão Barroso ajudou Grécia, Irlanda e Portugal a desenvencilharem-se o melhor possível. No nosso caso, Sócrates e Passos Coelho o atestarão.

 

Em 1943, ministro de Churchill louvava-lhe os méritos de De Gaulle até Churchill lhe dizer que não valia a pena insistir: “You like the man and I don’t”. Há sempre opiniões contrárias de cada homem político; Durão Barroso tem amigos e inimigos. Mas factos são factos.

  

 

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Sexta-feira, 18 de Abril de 2014

Menino Jesus prefigurando a Paixão

 

 

 

Goa? séc. XVII
Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra
Arquivo Nacional de Fotografia / Carlos Pombo da Cruz Monteiro

 

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Quarta-feira, 16 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

 

 

 

Cem anos depois

 

 

A Primeira Guerra Mundial começou vai fazer cem anos no princípio de Agosto. Livros e televisões evocam o cheiro pungente de milhões de mortos — desde 7.000 para Portugal até 1 milhão e 600.000 para a Rússia — ruínas de cidades e descampados. Os horrores que foram filmados, aqueles sobre os quais se lê e os que se adivinham são muitíssimos. E o horror maior é que menos de 21 anos após o fim da Primeira Guerra Mundial a Segunda havia começado.

 

Durou de 1939  a 1945, matou mais gente ainda (portugueses, só em Timor) e acabou, tal como a Primeira, pela derrota da Alemanha e seus aliados. A Alemanha ficou arrasada e dividida; em vez de a fazerem pagar pela guerra, perdoaram-lhe dívida e houve o Plano Marshall, foi-se recompondo sem revanchismos que levassem a outro Hitler e à tentação de nova guerra. Reunificada, democrática, cívica e próspera (até 2010, a única das grandes potências europeias invariavelmente decente com os pequenos) os incómodos que, nos últimos anos, a sua fobia patológica da inflação tem causado a vizinhos pequenos e pobres são graves mas não se comparam com a anexação nazi dos sudetas.

 

Os sudetas têm sido lembrados agora não por causa da Alemanha mas por causa da Rússia. O ex-KGB Vladimir Putin anda a armar aos czares e resolveu anexar a Crimeia (dito e feito), perturbar a parte oriental da Ucrânia e não se sabe que mais ainda. Outras terras europeias com minorias russas — Estónia, Letónia, Lituânia (três estados-membros da União Europeia, aliados na OTAN) — sentem-se ameaçadas pela retórica expansionista e revanchista do Kremlin. Juntamente com Polónia e Suécia — e E. U. A — querem que a Rússia seja avisada em termos inequívocos. Além das sanções aprovadas depois da anexação da Crimeia, deveriam explicitar-se sanções mais graves a serem aplicadas se a Rússia tornar a pôr pé em ramo verde. Apesar de Putin insistir em exercícios militares perto de fronteiras, fomento de rebelião na Ucrânia e retórica perigosamente ambígua, membros da União do sul, entre eles Portugal e às vezes Alemanha, estão relutantes a elevar o tom e recomendam “prudência e diplomacia”.

 

Atenção. O Kremlin sabe que nenhum poder ocidental mandará rapazes e raparigas matarem e morrerem pela Crimeia (e presume que pela Ucrânia também não). No mundo pre -1945 que Putin parece imaginar à sua volta, europeus e americanos devem figurar como poltrões anafados e sem chefe, incapazes de resistirem ao quero, posso e mando do Senhor de todas as Rússias.

 

Mesmo sem comemorar a Primeira Guerra Mundial com o começo da Terceira poderíamos sair vitoriosos desta embrulhada. O poder económico conjunto de Europa e Estados Unidos é tão superior ao da Rússia que sanções inteligentes levariam o Kremlin à glória. Mas seria preciso que alemães, britânicos, franceses, todos, fizéssemos pequenos sacrifícios a curto prazo.

 

Sem a coragem de conter Estaline não teria havido OTAN nem União Europeia. Esperemos que Putin chegue para nos endireitar outra vez a espinha.

 

 

 

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Quarta-feira, 9 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

Le Déjeuner sur l'herbe

Édouard Manet (1863)

 

 

 

 

 

O sarilho francês

 

 

Revolução Francesa e Revolução Americana, feitas para a felicidade ser possível sobre a Terra, tiveram destinos diferentes. No Novo Mundo, os derrotados de 1776 fugiram para sempre. Na Velha Europa, os vencidos de 1789 fugiram também - mas depois voltaram. Em cada francês coabitam um ci-devant e um sans-culotte e a República gosta de armar em Monarquia. A América é igualitária. Um dia no State Department, a discutir defesa europeia (as coisas de que um homem se lembra de tratar…) disse a Peter Tarnoff, vice-ministro dos estrangeiros: “V. sabe, a Europa é complicada”. “Sei, sei. É por isso que nós estamos aqui”. Parte da simplificação transatlântica resume-se assim: riqueza, a que cada um possa e queira mas todos tu cá, tu lá.

 

Durante a guerra de 1939-45 a França adaptou-se tão bem à ocupação nazi que há um livro chamado “Quarenta Milhões de Pétainistas” mas figurou entre as potências vencedoras com lugar cativo no Conselho de Segurança da ONU e ocupação militar de uma das quatro zonas em que a Alemanha foi dividida. Graças ao general de Gaulle, refugiado em Londres donde, a 18 de Junho de 1940, pela telefonia da BBC apelou os franceses à resistência. E graças ao Partido Comunista (depois de Hitler invadir a URSS em 1941; até aí, respeitador do pacto Germano-Soviético de 1939, nem tugira nem bulira). Em país maioritariamente colaboracionista, gaulistas e comunistas morreram pela França livre e ganharam. Os primeiros quatro versos de um poema célebre de Aragon — “Celui qui croyait au ciel/Celui qui n’y croyait pas/Tout deux adoraient la belle/Prisonnière des soldats” — publicado clandestinamente, encapsulam o que ‘spin doctors’ chamariam hoje a “narrativa” francesa da guerra. De Gaulle só esteve no poder 10 anos, o Partido Comunista partilhou governos menos tempo ainda, mas ambos reforçaram o anti-americanismo francês. Os comunistas por fidelidade a Moscovo; De Gaulle por Washington o ter humilhado durante a guerra.

 

Houve caprichos caricatos (o Minitel, tentativa saloia de internet), outros custosos (a semana de 35 horas). Anti-americanismo e anti-capitalismo eram unha com carne; em 2012, após 17 anos de presidentes de direita, o socialista François — “Não gosto dos ricos” — Hollande chegou ao Eliseu. Tal como Mitterand, quis governar à esquerda e perdeu o eleitorado centrista. A seguir guinou à direita e alienou parte da sua base levando tal banho em eleições locais que mudou o primeiro-ministro. Nomeou Manuel Valls, ‘Tony Blair francês’, mas para ofender menos os seus impôs-lhe no governo figurões da ala mais esquerdista do partido. Desrespeito antigo por padrões fiscais europeus mantém-se (embora agastada, a Alemanha continua a pôr-lhe a mão por baixo; sem o eixo franco-alemão a Europa teria esquecido muito menos Hitler).

 

Até 2017 nada mudará. Depois, pouco. A França não quer a Europa para ser mais europeia. Quere-a para a Europa ser mais francesa, para que uma pitada de inflação seja o sal da economia.

 

 

 

 

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Domingo, 6 de Abril de 2014

Lettre à un petit chien

 

 

 Jean Guitton

 

 

Cher Gyp,

 

As-tu une âme, mon petit chien?

 

J'ai séjourné, il y a bien longtemps, à Hickleton chez un grand seigneur anglais, Lord Hali­fax, que tu connais bien. Lord Halifax ne pou­vait se séparer de toi, son petit chien, qu' il avait appelé Gyp.

Gyp, je m'en souviens, tu prenais à cinq heures le thé avec lui. Tu étais de sa famille, comme l'est un frère. Mais ce qui m'a le plus surpris, c'est que lorsque tu es mort, ton maître t'a fait faire un petit cercueil et il t'a enterré près de l'église.

 

Un jour, je lui dis que sa conduite avec toi m'étonnait beaucoup : il te traitait comme si tu avais eu une âme, et donc une immortalité, Alors, le vieux lord me regarda en même temps qu'il te regarda. Il me dit : «Peut-être Gyp n'a-t-il pas d'âme (soul), mais Gyp a certainement un avenir (future). Car il a pour moi des mouve­ments d'amour — ici, ayant compris, tu aboyas — et tout mouvement d'amour est néces­sairement éternel, comme la beauté.»

 

Cette tendresse avait rapproché Maurice Genevoix de tes congénères, et de tous les ani­maux, en particulier des écureuils, qu'il affec­tionnait. Il disait que l'animal n'est pas une bête. Il est bien plus : l'animal, pour Genevoix, était un «préhomme ensoleillé».

 

Je crois à la souffrance des animaux. Il me suffit d'entendre la plainte des bêtes pour savoir qu'elles souffrent. Je ne suis pas comme Des­cartes qui, lorsqu'il donnait un coup de pied à un chien, le faisait sans aucune pitié, parce que le chien était pour lui une mécanique.

Saint Paul disait que les animaux gémissent avec la création tout entière.

 

Mais je crois à la souffrance des animaux d'un point de vue religieux. Car le Christ sur la croix était semblable à un agneau blessé. Selon saint Jean, le Christ est mort au moment même où l'on immolait les agneaux pour célébrer la pâque juive. Par son oblation, Jésus mettait fin aux autres sacrifices : il est devenu le seul Agneau.

Et de ce point de vue, je pense que l'animal qui souffre est associé d'une manière très lointaine à la Passion.

 

Et c'est pour toi, Gyp, que je me récite le quatrain de Gérard de Nerval:

 

 

Respecte dans la bête un esprit agissant:

Chaque fleur est une âme à la nature éclose.

Un mystère d'amour dans le métal repose,

Tout est sensible! Et tout sur ton être est puissant

 

 

 

Jean Guitton

in Lettres Ouvertes

© Éditions Payot & Rivages, 1993

 

 

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Quarta-feira, 2 de Abril de 2014

O Bloco-Notas de José Cutileiro

 

 

 

 

Susana e os Velhos (1610)

Artemisia Gentileschi

 

 

 

 

A caça aos velhos

 

 

Quando eu era pequeno os meus pais tinham sempre razão. Quando o meu filho era pequeno o Dr. Spock já mudara as regras e quem tinha sempre razão era o meu filho. Feitas estas constatações receei às vezes que, se chegasse a velho, alguém tivesse entretanto descoberto que o melhor para os velhos era matá-los.

 

Humanistas horrorizados e tecnocratas como se não fosse nada com eles dizem-me agora que estamos à beira desse dia. O ambiente é propício: por exemplo, um estudo recente da Universidade Católica de Louvain mostra que empregados com mais de cinquenta anos de idade dão prejuízo financeiro às empresas onde trabalham. E é por aí que o gato vai às filhoses.

 

Comparação com África é instrutiva. Até meados do século XIX, em muitas sociedades tradicionais ao sul do Sará, os homens velhos tinham muito mais prestígio e poder do que os novos. Mandavam na aldeia, escolhiam as melhores mulheres, comandavam as hostes na guerra. Os novos obedeciam e esperavam a sua vez. Com os colonizadores veio o trabalho pago a dinheiro nos campos e nas minas. Numa economia monetarizada os novos tornaram-se os senhores: podiam, mais do que os velhos, comprar vacas para pagarem noivas e bens de consumo em geral, abundantes e indicadores de estatuto como nunca acontecera. Toda a gente ficou contente com a mudança — tirando, já se vê, os velhos.

 

Na Europa post-industrial a história foi diferente mas o resultado parecido — e pior. Os progressos da ciência e do bem-estar social estenderam a longevidade de maneira inédita, diminuíram a idade da reforma e restringiram o tamanho das famílias. Cada vez menos gente nova trabalha para sustentar gente cada vez mais velha. E os velhos, que já há muito tinham mau nome —

 

Em suma, somos os velhos

Cheios de cuspo e conselhos.

Velhos que ninguém atura

A não ser a literatura

 

E outros velhos. (Os novos

Afirmam-se por maus modos

Com os velhos). Senectude

É tempo, não é virtude.

 

escarnecia Alexandre O’Neill há mais de meio século — são hoje, em partes da sociedade portuguesa, mais mal vistos do que banqueiros, políticos ou jornalistas. O fim da picada.

 

E há mais. O predomínio descontrolado da economia financeira, desligando proventos da produção de bens, e a captura por gente do sector, jovem e altamente especializada, das alavancas do Estado, cavou um fosso entre o bom senso da maioria dos portugueses e a insensatez militante de quem os governa. Tal insensatez — ou “falta de inteligência emocional” — é frequente  em cientistas mas rara em políticos. Salvo talvez em Quislings, isto é, governantes que não prestam contas ao seu próprio povo mas a poder suserano de quem sejam vassalos.  

 

Quanto aos velhos? Impor eutanásia obrigatória — que poderia ser extinta, como o serviço militar, quando sábios da casa e da troika achassem que os números batiam certos. E a malta? A malta, na mesma: “Isto, Senhor Doutor, o que é preciso é a gente estar bem com a lei que há”. Descendentes dos heróis do mar? Ou dos que por cá ficaram?

 

 

publicado por VF às 10:15
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